Nos últimos dias a vida seguiu o seu curso normal.
Trabalhei; estudei; paguei contas; recebi mais contas; comi; dormi; assiti televisão de maneira inerte até a baba escorrer pelo canto da boca; fui pra aula de yoga; fiz feira; preparei macarrão com sardinha algumas vezes para o almoço; assisti filmes no dvd; fui a terapia.
Nos últimos dias a felicidade tomou de conta.
Fui a uma festa só pra luluzinhas; ajudei a enfeitar a festa de aniversário de dois anos do pequeno José (filho de uma amiga mais que querida); recebi amigos em casa para boas conversas regadas a coca-cola, vinho e café com leite; recebi vários telefonemas e e-mails da minha pequena dizendo o quanto minha ama e está com saudades; elogios generosos e maravilhosos por meios virtuais; e nesse ambiente também reencontrei gente com quem a muito naum falava; me senti feliz com a minha própria companhia; grudei os fones do mp4 nos ouvidos e dancei com as mãos para o alto de maneira descompensada no leito de hospital onde minha vó estava internada, arrancando sorrisos dela e dos outros pacientes enquanto esperavam o momento de entrar no centro cirúrgico.
Nos últimos dias me surpreendi.
Levei o meu sobrinho pra o treino de futebol; joguei com ele e os seus coleguinhas enquanto o treino não começava pra valer; fiz gol, defendi; tive um gol dedicado a mim e eu, que detesto futebol, curti de montão aquele momento; ouvi minha vó me desejar boa noite (depois da cirurgia, mas ainda no leito do hospital) da maneira mais inusitada possível:
"Sonhe com os anjos, minha filha. Não, não, sonhe com uns gatos, um sonhos mais pecaminosos. Você tá precisando é disso".
"Como assim vó?"
"É isso mesmo que você ouviu" rs.
Nos últimos dias cresci.
Neoplasia Maligna, foi o que eu li no resultado da biopsia do nódulo que foi retirado da perna da minha avó. Fechei os olhos com toda a força possível. Não consigo explicar o silêncio que ficou aqui dentro. Senti meu corpo tremer de uma forma estranha. Cerrei os olhos, mais ainda, pensando que ao abri-los todo aquele engano ia se desfazer e a vida ia voltar ao normal. Tornei a abrir os olhos, devagar, temerosa e, sim, havia algo errado. A vida não voltou ao normal.
Pensei que devia chorar, chorar muito. Não consegui. Por alguns instantes pensei que o que estava acontecendo não era justo comigo, com ela. Quis gritar, espernear, maldizer a vida. Mas um sentimento estranho me fez ir até a casa da minha avó e arrastá-la pra um passeio. Não contei nada pra ela. "Isso não vai acrescentar nada de bom na vida dela", pensava o tempo todo no caminho. Fomos a uma pastelaria e enormes pasteis de carne (o melhor agrado que uma pessoa pode fazer pra minha avó).
Em casa, madrugada a dentro, bebemos e conversamos. E lá estávamos, ela com um copo de café com leite na mão, eu com uma taça de vinho. Brindamos a vida. Jogamos conversa fora, rimos muito, falamos de amores, conversamos sobre a beleza da vida. Fiz minha avó ouvir Radiohead, fechar os olhos e sentir a música com os bracinhos para o ar. Ela me fez cantar junto com ela a música Trem das Onze como faziamos quando eu era pequena. E no final, depois de declarações mútuas de amor, vi meu capuchinho de algodão dormir, bem agarradinha dela. Então, chorei.
Não, definitivamente a vida dessa senhora, que foi tão bem vivida, não acaba com esse diagnóstico. Ainda há muito a se fazer.
Amo você vó!